O site de literatura Homo Literatus realizou meses atrás uma seleção de contos para a primeira edição de sua revista Pulp Fiction.
Este que vos escreve participou da seleção que contou com, pasmem, 200 inscritos e, infelizmente não foi selecionado.
Isso não significa que vamos desistir, preparem-se para as próximas edições.
A primeira edição da revista está disponível no site e pode ser baixada sem nenhum custo. O objetivo é mostrar o trabalho dos escritores brasileiros, alguns desconhecidos, outros com algum nome no mercado.
Para baixar, basta seguir este link: Revista Pulp Fiction ed1.
E já que escrevi um material para esse concurso e ele seria divulgado caso fosse selecionado, nada mais justo do que deixá-lo aqui abaixo para que você também possa ler e dar a sua opinião.
Assexuado
Ajoelhado sob o sangue que escorria de um corpo inerte
e tendo em uma das mãos a arma do crime, Josias tentava, em vão,
acalmar um pequenino e choroso bebê com a mão restante. O pobre
rebento estava chocado após assistir uma mulher ser morta com o
martelinho de bater carne retirado da gaveta da cozinha. A ineficácia
daquela ferramenta como arma e a inabilidade daquele que a empunhava
fizeram com que a cena fosse perturbadora até mesmo para um bebê.
Os golpes não letais deram à vítima a chance de lutar por sua
vida, embora essa possibilidade apenas lhe tenha causado mais
sofrimento, sentindo cada contusão da cabeça irregular e cada
laceração que o lado com lâmina provocava.
Josias e a criança estavam totalmente manchados com o
líquido avermelhado que começava a coagular e endurecer,
empesteando o ar com um cheiro ocre e ferroso quando o rapaz começou
a se indagar como foi que chegou naquela situação.
Poderia ter sido numa tarde qualquer, em que o rapaz
regressava do colégio cansado e abatido após fazer uma longa
caminhada sob o sol quente de verão. Os problemas acumulados durante
o dia o cegavam, assim como as salgadas gotas de suor que desciam-lhe
pelo rosto corado.
Quisera ele que o lar lhe trouxesse refúgio. Aquela
casa antiga, situada num bairro de classe média, costumasse exalar
um incômodo e agridoce perfume feminino, que já se podia sentir
antes mesmo de abrir o portão. Uma vez lá dentro, atravessava a
sala poeirenta e mal cuidada para alcançar o seu quarto e trancar-se
lá dentro à procura de paz.
Aquela fragrância concernia à Dona Angélica. A
mulher que morava algumas ruas abaixo, costumava visitar o seu pai
algumas vezes por semana, sempre durante à tarde. O teor daquelas
visitas era confirmado pelo ranger da cama na alcova ao lado ou pelos
gritos e termos chulos que a mulher dizia e ouvia de Osvaldo, um
mecânico desempregado, que não se importava em arranjar um novo
trabalho ou, pelo menos, manter a casa limpa.
Josias ligava o aparelho de som e músicas como Killing
in the name of invadiam o ambiente, ocultando
os irritantes barulhos oriundos do cômodo ao lado. Só saía do seu
retiro para usar o banheiro, embora nesse pequeno intervalo ainda
fosse capaz de ouvir o casal interpretando Jeannie
é um gênio ou
algum outro seriado antigo.
Num desses dias, olhou-se no espelho enquanto lavava o
cabelo raspado com máquina e viu seu rosto de testa grande e
sobrancelhas finas, que encimavam olhos castanhos e enigmáticos. Não
servia para feio, possuía orelhas simétricas e dentes alinhados,
apesar de um pouco amarelos.
Mas a paz costumava ser breve. Tão logo Dona Angélica
deixava a residência, seu pai vinha importuná-lo, muitas vezes
bêbado, se gabando a respeito de seus feitos com a vizinha.
Osvaldo insistia que o filho também lhe contasse suas
peripécias, embora Josias respondesse que não ficava confortável
para conversar a respeito. A relutância do rapaz só o deixava mais
irritado, então ele trazia material pornográfico, revistas, vídeos,
objetos que ele tinha nojo até de tocar, mas que o homem o obrigava
a experimentar.
A gota que transbordou o balde foi a ocasião em que o
homem, completamente fora de si, trouxe um filme dele com a vizinha
para que o filho assistisse.
Josias só conseguia livrar-se dele quando se trancava
no quarto e aumentava o som ou quando Bete chegasse. Sua mãe era uma
mulher magnífica. Passava o dia trabalhando para sustentar a família
e ainda tinha que chegar em casa e fazer o serviço doméstico,
negligenciado pelos homens que ali moravam. Isso não quer dizer que
o pai passasse impune. Bete surrava o marido sempre que tinha uma
chance e o inútil nem era capaz de se defender. Sentiria vergonha em
se queixar dela para a polícia ou algum vizinho, então recolhia-se
em sua insignificância enquanto lambia suas feridas.
Foi numa dessas noites que Osvaldo ouviu o filho
desabafando com a mãe.
Josias já tinha dezesseis anos e ainda era virgem. O
boato que nasceu no colégio e logo se espalhou pela vizinhança era
de que fosse homossexual. A mãe lhe pediu que dissesse a verdade,
que não havia problema se o fosse. O filho apenas explicou que não
sentia necessidade em se relacionar com ninguém, que preferia ficar
sozinho por ora. Bete lhe deu um beijo e foi dormir.
Quando Josias voltou a si, ainda restava o problema
atual. O bebê em seu colo chorava e estava sujo de sangue. Achou
melhor lavá-lo e colocá-lo para dormir. Durante o processo
voltou-se para aquelas lembranças outra vez
Sentiu uma reminiscência. Visualizou mentalmente o
período alguns dias depois daquela conversa com a mãe, quando
começou a ser assediado por Ritinha. A moça, que morava numa rua
próxima e estudava no mesmo colégio que ele, o procurava de forma
insistente, apesar das tentativas dele de se esquivar.
Ritinha era tudo o que ele detestava em uma mulher.
Apesar de ser bonita e dona de um corpo novo e esbelto que qualquer
garoto desejaria, possuía trejeitos que o repeliam. Ela parecia
fazer questão de parecer vulgar. Exagerava na maquiagem e no tamanho
diminuto de suas vestes. Parecia um desafio à física sua capacidade
de preencher peças de roupa bem menores do que seu corpo, e de
caminhar balançando-se como quem dança.
Talvez seu caminhar fosse consequência do seu gosto
por ouvir funk no celular. Tudo bem se ela usasse fones de ouvido,
mas não, todos a sua volta eram premiados com música a custo zero.
Se algum descontente reclamava ou pedia para abaixar o volume,
conhecia outra faceta dela que Josias detestava. Ritinha era
“barraqueira”, adorava fazer um escândalo e chamar atenção de
todos à sua volta quando era contrariada.
As recusas dele em ficar com aquela garota tão fácil
só fizeram piorar a sua fama. Agora todos tinham certeza que era
gay. Como um garoto como ele perderia aquela oportunidade? Era o que
todos se perguntavam às suas costas.
Fugindo desse cerco, ele voltou para casa mais cedo um
dia, a tempo de adentrar antes da visita costumeira. Naquela tarde,
as ondas sonoras de calmaria chegavam a bordo da sugestiva hail
and kill e ele achou que seria um entardecer
tranquilo.
Tão logo Dona Angélica chegou a quietude se desfez.
Enquanto o pai fornicava com a vizinha no quarto ao lado, o rapaz se
indagava por que ele não nutria daquele desejo carnal, ou até mesmo
amoroso, como a maioria dos mortais. Estaria ele complexado? E se
estivesse, seria tudo culpa dos seus pais? Concluía que sim, afinal,
a maioria de nossos desvios de caráter, são consequência de algo
que nossos pais fizeram. É sempre mais fácil culpar ao outro.
Já era noite quando Osvaldo bateu em sua porta. Fingiu
não ter ouvido, afinal seek and destroy
preenchia o ambiente e era uma boa desculpa para ignorá-lo. Mas as
batidas se tornaram murros e precisou abrir, vendo um homem
embriagado querendo falar-lhe.
Josias deixou o quarto e foi à cozinha tomar um copo
d´água enquanto o pai o seguia, fazendo-lhe todo o tipo de ofensas
e o lembrando do quanto o odiava por ser um mariquinha. O rapaz já
estava acostumado com aquele tipo de afronta e sabia que só pioraria
caso se irritasse, por isso preferiu ignorar.
Mesmo após o banho, o bebê continuava chorando sem
parar, tirando Josias do transe que o fazia relembrar o passado.
Colocou então o pequeno no berço e foi fazer-lhe uma mamadeira para
acalmá-lo. Nem mesmo o barulho do micro-ondas era capaz de abafar
aquele berreiro, assim como o o metal não pareceu capaz de encobrir
os gritos de seu pai agonizante.
Josias lembrou-se novamente. De Osvaldo, embriagado,
somente de cuecas na cozinha a atormentá-lo com aquela coisa toda de
sexualidade. Conseguira desprezar aquelas ofensas até o pai lhe
contar que havia contratado Ritinha para desvirginá-lo. E que nem
assim ele fora capaz de fazê-lo.
O forno apitava freneticamente avisando que o leite
estava quente, mas aqueles bips
agudos apenas o lembravam de como metia a faca de cozinha no peito de
Osvaldo. Foram tantas estocada que o homem nem sofreu muito,
sangrando até a morte em minutos. Mas a morte daquele homem
desprezível não foi assim tão rápida. Josias o ameaçou com a
faca, mandando que calasse a boca, só que o pai estava alcoolizado,
e não percebeu que o garoto falava sério até levar o primeiro
golpe, uma laceração no queixo.
Agora no chão, Osvaldo segurava um pano de prato
contra o rosto enquanto o sangue tingia o pano puído. O filho estava
agora dominado pela fúria e começou a cortar o rosto do pai, ainda
vivo, desenhando-lhe novas feições. Primeiro foram os lábios,
rasgados até as orelhas para deixar-lhe sorrindo orgulhoso. Em
seguida, arrancou os olhos enquanto o homem jazia desmaiado, pois
queria que o visse. Terminou serrando os pulsos enquanto a vida
deixava aquele corpo e finalizou por castrar-lhe, assim jamais
trairia sua mão novamente.
Esgotado, permaneceu ao lado do cadáver, em choque,
assim como mantinha-se agora, ao lado de outro defunto, sem saber o
que fazer até que sua mãe chegou.
Bete tentou, em vão, ocultar o corpo do marido embora
já fosse tarde. Os gritos do homem haviam chamado a atenção de
vizinhos que avisaram a polícia. Quando eles vieram, Bete assumiu a
autoria do crime e foi presa no lugar do filho.
Esse é o tipo de coisa que as mães fazem pelas crias.
Nada mais justo depois de deixá-los com tantas perturbações,
pensaria o filho que se aproveita da situação, mas Josias queria
confessar, queria ser preso no lugar dela, só que Bete não
permitiu. Disse que tiraria a própria vida se ele se entregasse.
Josias não tinha mais mãe, assim como aquele bebê
que agora tomava feliz o seu leitinho, completamente ignorante a
despeito de sua progenitora estar a apenas alguns metros, sem vida,
endurecendo sobre uma poça do seu próprio sangue.
Mas por que Josias deixou órfão aquele pequenino?
Quando sua mãe foi presa, ficou definido que precisava
de um tutor, afinal, ainda era menor de idade. Na ausência de
parentes conhecidos, foi entregue à madrinha. Lucinha era uma mulher
de quase quarenta anos, e com uma vida cheia de histórias para
contar. Havia se casado muito cedo e sonhava muito em ser mãe. Só
que o marido desenvolveu leucemia e ela jamais conseguira engravidar.
Quando Josias foi morar em sua casa, Lucinha jamais
imaginaria que os dois tomariam um porre juntos, usariam drogas por
horas à fio, buscando esquecer as mágoas que carregavam, e que,
naquele breve momento de descontrole, acabariam transando.
E daquele único ato inconsequente gerou-se um fruto.
Uma nova vida que agora dormia tranquilamente enquanto o seu pai
assistia um episódio de Doctor Who
ao mesmo tempo em que fatiava os restos mortais de sua mãe para o
descarte.
Josias jamais revelaria ao filho suas verdadeiras
origens. Aquela criança não teria pais para complexá-lo, seja
servindo de um exemplo deturpado, seja deixando-o para trás no
momento da viagem derradeira.
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